quarta-feira, agosto 17, 2005

Fiat Lux


E Deus fez a luz. E viu que era bom. Não, não ele. A luz era bom.

E fez o homem à sua imagem e semelhança. Só que sem a barba branca.

E fez um iate com cinco suítes, pista de dança, piscina, uma geladeira cheia de whisky e energético (o famoso “Magadinho”), e repleto de modelos do leste europeu lindas, nuas e taradas para fazer companhia ao homem. E viu que era muito bom.

E fez, para compensar a balbúrdia que começou, a tensão pré-menstrual. Logo viu que seus filhos a batizaram de TPM.

E fez o empresário opressor, o neoliberalismo e o FMI, pra livrarem a barra dele nas passeatas do MSTpm, organizadas por seus filhos indignados com a revolta mensal das modelos do leste europeu lindas, nuas e taradas.

E fez a companhia de energia elétrica, para que todos tivessem acesso à luz que tinha criado no início.

E fez o PROCON. Porque a companhia de energia elétrica já estava cobrando preços exorbitantes e seus filhos, dessa forma, não conseguiam pagar a fatura do cartão de crédito das modelos do leste europeu lindas, nuas e taradas. Na geladeira do iate o “Magadinho” foi substituído por Velho Barreiro e Coca-Cola. E deram o nome de “Samba”.

E fez, pra dar ordem às manifestações dos seus, um torneiro mecânico com nove dedos e meio. Obviamente, Deus não o privou dos indicadores, pois ele deveria apontar o caminho.

E fez uma máquina de dinheiro. Pois eram muitos dos seus que apareciam pedindo “cemzinho” pra não contar que era tudo culpa dele.

E fez o congelamento de preços, pois a máquina de dinheiro injetou tanta grana que a inflação cavalgava a rédeas soltas. Teve até um nobre brega que achou que era o milagre econômico. Tal nobre enriqueceu com uma fábrica de bolos, mas ninguém ganhou nenhum pedaço. Hoje dá aulas numa padaria em São Paulo.

E fez a policia. Para prender aqueles que tinham recebido “cemzinho” e agora exploravam as modelos do leste europeu lindas, nuas e taradas como cafetões em outros iates, construídos à imagem e semelhança do iate primordial e com o nome de “Paradise”.

E fez a corregedoria de policia. Porque os policiais estavam recebendo mais com propina dos cafetões do que de salário com Deus.

E fez a mulher feia. Não, não que ele quisesse fazer a mulher feia. Tentou fazer muitas modelos do leste europeu lindas, nuas e taradas para desvalorizar o mercado dos iates “Paradise”. Mas a máquina para tal fim não tinha certificado ISSO, e, por ser exigida numa rapidez muito grande, acabou produzindo mulheres feias. Os seus logo criaram vários nomes para tais donzelas. “Mocréia” e “Beluga” agradaram muito ao Pai Todo-Poderoso. Mas, por razões óbvias, o que ele mais gostou foi “Louva-Deus ao avesso”.

E fez o futebol. Porque a maioria dos seus filhos não caiu na história das mulheres feias e viram que as modelos do leste europeu lindas, nuas e taradas eram muito melhores. Dessa forma, com um esporte, poderiam ocupar o tempo com outra diversão.

E fez (ainda culpado pela produção de mulheres feias) um senhor que fornecia whisky mais barato. Com mais bebida, os homens não reclamariam tanto das mulheres feias. Com algumas doses já as achariam bonitas e estaria tudo resolvido. Mas logo viram que o whisky desse senhor presenteava os homens com uma tremenda dor-de-cabeça no dia seguinte. Perguntaram ao senhor de onde ele trazia o whisky. Ao responder que Deus o enviava aquela bebida, os homens riram muito e o consideraram louco. Em função disso começaram a dizer que seu whisky era “batizado”.

E fez o sábado, o sétimo dia, para poder descansar. Estava estressado com tanta confusão.

E fez o domingo, na verdade uma grande jogada de marketing. Pressionado pelos seus, que alegavam ter só um dia de descanso, e ainda só no fim da semana, Deus fez o domingo ser o primeiro dia da semana, e também de descanso. Assim, todos teriam descanso no início e fim da semana. E como a semana sempre recomeçava, os dois dias ficaram juntos.

E fez o salão de beleza para as mulheres. Todas elas, indistintas de beleza, reclamavam que, por causa do futebol, invenção Dele, seus maridos não faziam mais nada no domingo, outra invenção Dele. Em tal lugar, as mulheres poderiam ocupar seu tempo e, inclusive, falar mal de seus maridos. Logo os homens viram que tais salões não eram milagrosos no caso de algumas mulheres. Mas isso não foi espanto. Eles sabiam: milagroso só o Pai.

E fez a televisão. Com isso, pôde fazer um pronunciamento pedindo que não se realizasse CPI para apurar a origem da verba dos cafetões. Decidiu aparecer em pessoa em rede mundial, já que um de seus enviados foi apedrejado ao perguntar quem nunca havia pecado.

Cansado de investir em seus filhos e não obter o retorno necessário, o Todo-Poderoso resolveu tirar umas férias de uma ou duas eternidades. Transeuntes testemunham tê-lo visto com uma barraquinha de sacolé no Piscinão de Ramos e adjacências.

Lucas Fabbrin

Deixou o pai na estação. Pela janela de vidro duplo via ele abanar, num misto de protesto, já saudade e, – tudo – ao mesmo tempo, apoio. Não sabia o que estava deixando para trás, apesar da janela denunciar: junto ao pai encontravam-se mãe, irmãos, irmãs, namorada (essa aparentemente a mais abatida). Dos colegas no trabalho havia recebido abraços e mensagens de apoio, carinho. Isso na véspera.

O lugar para onde ia não se restringia apenas ao que estava escrito no bilhete do trem. Este servia apenas para localizar um lugar no espaço. O verdadeiro lugar onde se encontraria estava depois de vales, pastos cheios de ruminantes, camponeses cansados, camponesas com longas saias, praias, planícies e casas velhas de madeira (que segundo sua namorada eram mais bonitas) com venezianas tortas.

Sabia que enfrentaria muitas coisas para chegar lá. Encontraria grandes pessoas e outras nem tanto. Alguns o prejudicariam, poucos o ajudariam. Mas a maioria o ignoraria, o que para ele seria o pior. Caixa acústica sem ressonância. Tímpano estourado. Banco de ônibus em estrada deserta.

Mas já tinha grandes companheiros a esperá-lo na estação de chegada: seus medos, suas angústias, suas dúvidas, seus sonhos. Sua coragem o impelia a seguir em frente, mas não sabia se estava apontando para o lado certo. Sua mira sempre foi boa, apesar de ter aprendido a atirar sozinho. Mas haviam muitos alvos. Isso pelo menos o confortava. Sabia que poderia escolher.

Lembrou de um grande amigo. Talvez o melhor. Ouviu dele, certa vez, que o grande problema é quando os nossos sonhos se realizam. Nunca tinha entendido muito bem aquela frase, mas pensou que começava a entendê-la. Viu o mar e uma ponte, e quis, forçosamente, fazer daquela imagem uma metáfora para o que vivia. Achou piegas mas interessante.

Ao descer, viu uma imagem já um pouco conhecida. O rapaz abanava da janela para um grupo de pessoas. O via triste, inevitável, mas confiante. Conseguiria o que queria. Parecia inteligente e capaz. Entendeu que aquilo acontecia milhares de vezes todos os dias. Em todos os lugares. Comum e peculiar. Lembrou de seu pai abanando e sentiu como era forte aquela imagem. Mão espalmada ao vento. Continha apenas rugas e marcas do tempo. Era suficiente. Riu quando pensou que parecia mostrar e dizer “um dia tu vais ter umas destas”, como se soubesse o quanto cada uma dessas marcas pode dizer.

Apesar de não ser nenhuma criança, sabia que muitas marcas esperavam para fazer parte de sua vida. Marcas de sucessos e de conquistas. Outras nem tanto. Estava disposto a pagar o preço.

Mas teria sempre seu pai naquela estação. Lhe dando apoio qualquer que fossem suas marcas.

Lucas Fabbrin