quarta-feira, agosto 03, 2005

Crime e Castigo ou A coisa tá russa



Morar no exterior é uma condição que traz consigo alguns problemas. Um deles é que tem sempre aqueles amigos, ou pessoas da família, que acham que, por morar no exterior, o sujeito está cheio do dinheiro. Aí, querem saber notícias e ligam a cobrar. Pode? Quem é que paga a conta? Sou eu.

Outro dia desses recebi a ligação de um grande amigo. O Raskolnikov. O Raskolnikov é russo e mora em São Petersburgo. Apesar da pouca idade ele é um cara meio antigo. Parece ter uma cabeça do século XIX. Mas, apesar disso, de vez em quando ele faz umas perguntas interessantes. Apaixonado pelo Brasil (esse pessoal de países frios adora o Brasil), ele sempre procura saber noticias tupiniquins. Teve até um dia que ele me disse que tinha entendido o Brasil. Foi no dia em que bateu seu recorde de garrafas de vodca. Eta povo pinguço!

Nesse dia em que me ligou, o Raskolnikov disse que ouviu pela internet uma transmissão de uma rádio do Brasil. Pelo o que ele entendeu, era uma transmissão feita de dentro um bar. O português do Raskolnikov não é mil maravilhas, mas até que dá pro gasto. Como bom brasileiro que sou, desconfiei do que ele falou. Não podia ser verdade.

Contou ele, que nesse dia, ficou com mais vontade ainda de viajar ao Brasil. Disse também que queria até se naturalizar brasileiro pra poder conhecer melhor a cultura e entender o que ouviu no rádio.

Segundo meu grande amigo de terras frias, a tal da transmissão só podia ser feita de dentro de um bar mesmo. Era um monte de senhores, que ficavam dando discursos e mentindo muito. Mas muito mesmo. Que nem bêbados. E olha que de bebum esses russos entendem! Se o Raskolnikov falou, tá falado.

Só que o Raskolnikov ficou muito impressionado com o fato de que no Brasil os bebuns se tratam por “Vossa Excelência”. Disse ele que aquilo lhe deixou muito impressionado, chocado até. Acostumado às tabernas estilo século XIX onde as mesas, pegajosas, ficam em cantos escuros e sujos, e os bêbados ficam dando discursos xingando a platéia e seus algozes, Raskolnikov achou fantástico que, pelo menos em nosso país, o tratamento alcoólico é mais polido. Até por um momento achou que o etanol no Brasil era diferente. Logo viu que era bobagem.

Raskolnikov – porque antigo e bobo não é a mesma coisa – ainda ficou com uma pulga atrás da orelha (até essa expressão ele já começou a usar). Ainda não acreditava que num bar, na América do Sul, os bêbados teriam tanta consideração uns com os outros. Chegou até a pensar – bem coisa de russo – que era assim porque eles eram sindicalizados.

Mas a confirmação veio quando ele entendeu – já disse que o português dele é bom – que uns acusavam os outros. Ficavam apontando quem devia quanto pra quem. Típica coisa de pinguço. Perguntavam coisas tipo “como Vossa Excelência sabia da existência desse dinheiro?”, ou então “Vossa Excelência recebeu ou não esse dinheiro?”. Ah, Raskolnikov na hora identificou. Conversa de bar sempre tem isso. Uns pegam dinheiro dos outros pra conseguir mais um martelinho. E como bom conhecedor da cultura brasileira, não se impressionou quando um deles falou que faltavam uns milhões na conta. Ele sabe que no Brasil a moeda é bem desvalorizada. Um milhão deve ser o preço de uma “branquinha”.

E o que o Raskolnikov mais gostou foi de ver que esses senhores, apesar de alcoolizados e de trocarem acusações, mesmo assim se ajudavam. Depois de ver que um deles assumiu que tinha roubado e, por causa disso, pediu que não fosse caçado, sentiu o maior orgulho dos bêbados brasileiros. Poxa, se ele admitiu que roubou, até tem direito a não ser caçado mesmo. Já pensou? E quando for um outro deles? Empatia é tudo.

Quando ouviu um dizer que “o presidente está envolvido!”, ficou mais calmo. A vodca ainda é a bebida tradicional da Rússia. No Brasil a culpa é do conhaque...

Raskolnikov é meio obsessivo. E também um pouco hipocondríaco. Mas é um bom papo. Serviu pra eu ver como se fica meio ignorante em relação à pátria quando se mora fora. As coisas mudam tanto e a gente não fica sabendo. Só tendo amigo russo pra entender as coisas.

Mas quem que paga a conta?

Sou eu.

Lucas Fabbrin