sábado, março 18, 2006

Começo

O cabelo preso era uma denúncia quase proposital do belo rosto sem marcas. Característica daquelas da sua idade. Talvez a celebração da maioridade fosse o anúncio de que o fim estava por iniciar. Belo rosto, belo vestido, bela postura. O que faltava não estava nela, mas ali dentro. Os seus não podiam comparecer. Não estavam em outra cidade. Não estavam em outro país. Simplesmente não estavam. A irremediável força da ausência absoluta. Restavam em algum lugar. Restavam dentro dela. Acreditava que a acompanhavam e a guiavam. Não sabia se a protegiam.

Horas de contemplação frente ao espelho. A busca da imagem inalcançável. Mas estava satisfeita, tinha feito um bom trabalho. Se orgulhava da própria imagem. Estava confiante e alegre. Apreciava todos os comentários. Desde os de admiração e desejo dos homens, aos de ciúme e competição das mulheres. Termômetros. Escalas.

Desceu a escada sob aplausos. Etiqueta comum da época. Etiquetados nos rostos, estavam os sentimentos de cada convidado. Apesar de completar maioridade naquela noite, já havia aprendido muito bem como distinguir os tantos rostos sinceros, ou nem tanto, sempre presentes naquelas ocasiões sociais. O baile de máscaras parecia sempre se fazer um pouco presente. Pensava que havia alguns que sempre o portavam consigo.

Mas isso não macularia sua festa. Decidiu esquecer isso. Sim, sua, pronome possessivo, e ninguém poderia revogar aquilo. A noite era sua. Era como se todos ali fossem seus. E se portavam dessa forma. Como próprio objeto de desejo, como ponto de estofo, todos convergiam a ela. Alguns tentavam acompanhá-la – logo desistindo –, outros mostravam-se ansiosos para recebê-la no ambiente de uma conversa, mesmo que breve. Como num bailado – sabia que logo a musica o instituiria de forma impositiva – escapava de uns e se aproximava de outros. A alguns deixava a vontade de revê-la, a outros a inveja de uma idade recordada com saudosismo. Apertos de mão, abraços, beijos, carícias e recomendações. Algo daquilo que ali era o motivo de tudo, todos queriam e desejavam. A beleza? A vitalidade? A alegria? Talvez um pouco de tudo.

Mas a ela também faltava algo. A presença do noivo, aceito não só pelos outros, mas também por ela, a confortava e lhe dava segurança. Dele tinha tudo o que dele esperava. Inclusive o fato de não dar-lhe tudo. Do padrasto tinha carinho, aceitação, proteção. Uma pessoa de importância singular na sua vida. Mas nenhum dos dois poderia suprir-lhe a falta maior. Entre grupos de pessoas, entre cumprimentos, saudações, presentes, não encontraria os seus. Pai, mãe, irmão. Ao menos sabia que os trazia consigo. Talvez por isso a maturidade. As faltas incontornáveis fazem todos crescer antes da hora, ou mesmo um pouco mais rápido.

Sorrisos muitos. Seu rosto também não a colocava em contradição com o ambiente. Grupos de senhores discutiam a política e a economia de forma sisuda. Senhoras comentavam o belo ambiente e o desfile incessante de belos e belas. A chuva que castigava os campos lá fora, talvez encontrasse única representação ali dentro nas lágrimas de emoção de algumas ao lembrá-la menina. Ao lembrá-la na época do acidente. Ao lembrá-la perguntando de quem não mais se fazia presente.

À medida que giravam os ponteiros, giravam cada vez mais os garçons, responsáveis por manter satisfeito o público cada vez maior, presente no lindo salão da casa. Movimento. Vai-e-vem da batuta e vibração nas cordas do violino. Impecável a afinação. Afinação presente na relação entre o padrasto e o noivo. Afinação quebrada. Fim da música. Ressoar de novo instrumento. Sujeição de todos os outros. Taça de cristal nas mãos do padrasto. Silêncio.

A homenagem nas fortes palavras do padrasto fez a chuva ultrapassar os limites do vidro da janela. Agora ela se fazia presente também nos seus olhos. Logo, marcas negras rondavam seus olhos, desmanchando aquilo que havia feito com tanto cuidado. Não importava. A emoção do momento era mais importante que a manutenção de uma imagem imaculada. As tintas abriram espaço para sua beleza natural. Beleza de menina. Talvez mimetizadas em uma tela, as tintas conseguiriam reconstruir sua beleza. Mas de qualquer forma ela perderia seu bailado, sua inconstância, seu movimento. Seria uma imagem estática. Única forma de contemplação que poderia aprisionar aquilo que se celebrava naquele momento: a passagem do tempo.

Ao lado do quadro da mãe, uma das poucas imagens remanescentes, se fazia entreaberta a porta do escritório do padrasto. Espaço que já fora de seu pai. Enquanto ele conversava com dois homens, ela pensava na reocupação daquele escritório como metáfora da ocupação do lugar do pai. Não podia dizer que não era uma verdade. Seu padrasto havia se tornado como um pai pra ela. Mas tinha sempre aquele “como”, comparação impossível.

Entre conversas e comparações à imagem da mãe eternizada na tela, o que iluminava seu rosto, mais do que a luz da festa e de sua alegria interior, eram os relâmpagos vindos da janela. Como velozes pinceladas de Deus no firmamento, aqueles riscos de luz a fizeram se aproximar da janela.

A imagem lá fora era de confusão, balbúrdia do tempo. O balanço que, por força do vento, brigava com suas amarras, parecia tentar aproveitar o momento de caos da natureza para finalmente voar. Dar um fim àquelas ameaças que ela tanto lhe proporcionou durante uma infância em meio às árvores. Acompanhou a folha que se destacara e que se lançara em uma jornada tendo o ar em movimento como guia. Parou junto ao tronco de outra, junto com os olhos dela. E ali ela o viu. Havia alguém ali. Havia ele ali. Antes fosse só ele; estava ela também. Se reconhecia no rosto daquele homem em meio a chuva e vento. Como no pranto de antes, também a tempestade ultrapassou o vidro. Mas dessa vez não se exteriorizou na forma de lágrimas, ou de movimento, ou de um grito. Gritava ela por dentro. Se movia toda ela por dentro. Chorava ela por dentro, de modo convulsivo. Todas essas coisas forçavam uma saída. Deviam encontrar uma forma de existir fora dela. Os trovões e a tempestade que lá fora transformavam o ambiente, não se comparavam ao caos que, na velocidade de um daqueles relâmpagos, havia transformado de forma ainda mais destruidora sua alma.

Não podia ser seu irmão. Mas entre sentimentos ambíguos, ela correu. Uma imagem que representava infinitas possibilidades. Ao mesmo tempo que era um reencontro, era também o esfacelamento de toda uma historia construída em cima da dor da perda. Os passos eram pesados. A essa hora, vestido, convidados, aparência, nada mais importava. Não sabia se a tinham visto correr. Na verdade nem pensava nisso. Queria chegar à porta, mas a casa havia, em questão de segundos, ganho muitos metros a mais. Mas finalmente a alcançou. Estava lá. Estava lá fora. Estava com a chuva, com os trovões. Se colocavam juntos para criar a tempestade. Haviam outros metros ainda a percorrer. Os gritos, os movimentos, as lágrimas, todos convergiam para só um sentimento. Medo. Ainda assim, venceu os metros que faltavam. Agora os passos eram realmente mais pesados. A água que inundava o vestido parecia eternizar aquele espaço cada vez mais difícil de superar.

Mas chegou. Chegou a ele. Chegou a si mesma. O reconheceu. Se reconheceu. A origem é a mesma. E ele a fez entender. Não seria possível. A morte de outra figura paterna seria insuportável. Mas o inenarrável é sempre mais amedrontador. Não poderia ter sido o padrasto. A transformação daquela figura em uma ameaça não dialogava com os sentimentos que cultivava por ele. Insuportável. Ela estava sob ameaça. A historia não tinha terminado. Parte dela ainda deveria ser escrita. O seu capítulo fazia parte do romance. Mas a imagem seguinte deu notas finais àquela metamorfose. Através da janela, o sorriso do padrasto se transforma, desaparece. E como na velocidade de um relâmpago, essa imagem vira uma metáfora concludente de um capítulo e início de outro. Agora ela também corre perigo. Corre.

Sua corrida com o irmão, através da água que caía, parecia um prenúncio. O único lugar que lhe vinha em mente é onde a água também corria. Mas aqueles dois que haviam saído pela porta da casa estavam próximos. Ousavam invadir sua tempestade, sua chuva, seu espaço, seu tempo com o irmão. Não o haviam mais. O tempo agora corria mais rápido do que eles. Seus passos não venciam o tempo nem o espaço da forma como queriam. A distância era cada vez menor. O rio estava ali. Não sabiam se chegariam. Ou se chegariam vivos. Já não sabia mais o limite entre vida e morte. Não estava preparada para descobrir. Entrou no barco. Queria saber ser ágil ali da mesma forma que era com as pessoas no salão. Mas o ambiente era outro. Ela era outra. Não podia mais se considerar a mesma pessoa que a minutos atrás. Ainda teve tempo de olhar para trás e ver a arma no outro barco.

Com o disparo ela acordou.

Lucas Fabbrin

sexta-feira, março 17, 2006

Tic-tic nervoso


KID VINIL é o verdadeiro profeta!