terça-feira, maio 09, 2006

EnganaDor ou "Vesti La Giubba"

As muitas bocas estavam sempre ali, lotando os espaços. Às vezes haviam até algumas bocas de pé, ao lado da arquibancada. Muitos anos de picadeiro já haviam lhe dado experiência suficiente para, mesmo em constante movimento, fazer uma amostragem de bocas sorridentes entre todas as presentes. Em um espaço no qual, para os outros, se criava um mundo de fantasia, encontrava nos sorrisos o fator que media sua produtividade. Soava frio, mas a verdade era essa. A magia, que para ele se encontrava mais nos olhares dos espectadores, tinha deixado de colorir seu espetáculo há anos atrás. Mas os sorrisos não percebiam isso. Era um trabalhador competente. O tempo transformara palhaço em “cômico de circo”. Transformara “respeitável público” em “público”, apesar do espetáculo ser privado.

Girava no picadeiro. Girava, braços erguidos, risada em face. Via as luzes que às vezes o ofuscava, sorrisos que o faziam seguir em frente, cenhos franzidos que o sufocavam. Aplausos, números, piadas, o tempo passava, mas o palhaço sempre ali, em meio ao picadeiro. Havia ocasiões em que era muito difícil tirar a fantasia, mesmo fora do circo. Via muito tênue a linha que dividia as muitas palhaçadas. Às vezes queria largar tudo aquilo, sair portão afora, terminar a palhaçada. Não se achava um enganador, mas muitos o viam assim. Enganava a sua, enganava a dos outros. Aos que iam lá, se sentavam, com pipoca, refrigerante, oferecia esse serviço. Por alguns momentos se podia deixar a dor do lado de fora. Um momento de engano. Mas assim como o mágico, seu colega de trabalho, sabia como era o truque. Sabia como enganar. Enganador.

Mas para quem conhece o truque, perde-se a magia, o encantamento. Já não sabia mais o porquê de estar no metiê. Não o porquê do começo, mas o porquê de perpetuar aquilo. À sua própria dor não enganava mais. Antes a fantasia lhe proporcionava uma passagem a um mundo de alívio, mesmo que momentâneo, fugaz. Fugas. O agora, que já não servia para localizar o tempo, mas para definir uma situação, lhe entregava uma realidade, um trabalho, um emprego. Não sabia explicar os momentos, porquês e situações da decadência da fantasia. E agora não se referia à roupa. As duas fantasias haviam se desligado uma da outra. Antes andavam, viviam acompanhadas, juntas. Agora a palavra “fantasia” se referia apenas às vestes que endossava durante cada espetáculo.

Como em um teatro, aqueles atrás do palco/picadeiro também deixavam seus personagens ao voltar para trás da cortina. Deixavam de ser mágicos, domadores, e toda a sorte de seres dotados de capacidades extraordinárias. Deveriam continuar a ser malabaristas, contorcionistas, mas dessa vez com outro significado, na vida real. A ele restava ser palhaço. Via que, assim como ele, muitos de seus colegas também já não viam tanta magia nas coisas. Mas, ao contrario do que fazia no trabalho, não podia se preocupar com a felicidade dos outros. Do seu ganha-pão, quando pendurava peruca, nariz, calça e sapato, queria portar consigo o sorriso. Mas parecia que a toalha com a qual tirava a pintura, levava junto também a risada. Se achava mais branco do que com a maquiagem. Principalmente nas épocas de maior angústia.

Deitou no divã, cheio de dúvidas e perguntas. Tinha decidido buscar respostas. O psicanalista mal sabia que havia feito uma importante intervenção ao receber o novo paciente.

“Bom dia. Pode passar. Qual é a sua graça?”